sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Ironia

Pisei a estrada sem olhar, sem atenção, sem querer pensar em mais nada. A chuva batia-me na nuca e descia até às minhas costas. Na minha cabeça ouvia os barulhos de uma cidade turbulenta, senti o cheiro do pecado, vi reflectido o meu passado obscuro. Era o cinismo de um urbanismo deprimente, um jogo de luzes que me confunde. Atravessei a rua. Nos cafés as mesmas pessoas olhavam-me com desdém, com o desprezo de quem pertence à "sociedade de consumo", definição de um conjunto de indivíduos perdidos no meio da frustração de ter um objectivo comum. É o paradoxo de um individualismo colectivo. Ignoro-os enquanto abro a velha porta do número 5. Este ritual era-me familiar. Não sinto as pernas, olho para a rua vazia de pensamentos e despeço-me de todas as almas inanimadas que preenchem o cenário cabisbaixo da energia urbano-depressiva. Subo as escadas imundas que rangem criando uma música que podia bem ser a banda sonora do meu filme. Sento-me no último degrau e discuto com as paredes frias o porquê do meu destino. Elas não me ajudam, acho que ninguém me pode ajudar. Estático diante da porta dela o meu cérebro discute com o meu braço se devo ou não tocar. Eu não intervenho, deixo-os discutir enquanto vejo através da porta o quadro que lhe ofereci. Era bonito o quadro, transmitia-me uma sensação de segurança. O braço ganhou a discussão e bato confiante na madeira húmida. Os 20 segundos de espera foram suficientes para rever todos os momentos que passamos juntos, todos. Foram tantos. Momentos que ela esqueceu, momentos que eu guardei. Sorri quando percebi que ela não estava, a porta não mexia, o silêncio ocupava o ar. Desci as escadas enquanto mantinha um sorriso estúpido. Estava aliviado. A ironia de quem procura e não encontra. Ela não estava em casa. Ela não estava em casa.

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